São Paulo, uma cidade em disputa

Américo Sampaio
Rede Nossa São Paulo
2019

São Paulo, uma cidade em disputa

A cidade de São Paulo celebrou, neste janeiro último, 465 anos de vida. São mais de quatro séculos e meio de história na qual o município se destaca das demais cidades brasileiras pela sua magnitude e complexidade. São Paulo sempre está no topo de todo e qualquer ranking nacional, seja ele bom ou ruim, independente da temática. No campo econômico, por exemplo, é incomparável. Ela é a cidade brasileira mais populosa, com quase 12 milhões de habitantes (IBGE); é a cidade mais rica, com um Produto Interno Bruto (PIB) de mais de R$ 600 bilhões ao ano, o que corresponde a mais de 10% da economia nacional (IBGE, 2018); é a cidade com um dos maiores índices de salário médio mensal dos trabalhadores formais, na casa de 4,2 salários mínimos (IBGE, 2016); e é também a cidade que mais abriu postos formais de trabalho com carteira assinada no último ano, quase 60 mil novas vagas em 2018 (CAGED, 2018) – o que representa cerca de 10% de todas as vagas criadas no país no ano passado. Porém, toda a opulência da cidade não se traduz em uma distribuição equitativa de direitos e qualidade de vida para todos os paulistanos e paulistanas.

Por esse motivo, a centenária e maior metrópole da América Latina é também destaque nos elevados índices de desigualdade. Prova disso são os dados revelados pelo Mapa da Desigualdade 2018, elaborado pela Rede Nossa São Paulo, pelo qual podemos entender com maior precisão como os serviços e equipamentos públicos municipais se distribuem na cidade, e como eles são geradores de padrões de qualidade de vida bastante dissemelhantes. Mais do que isso, a forma como a cidade de São Paulo gere suas políticas públicas acaba por criar duas categorias absolutamente distintas de cidadania, uma periférica e outra central. Ou se preferir, uma cidadania de baixa intensidade e outra de alta intensidade.

Cidadania é um conceito utilizado para definir o patamar mínimo necessário para se garantir a dignidade humana, isto é, condições básicas de vida. Tal conceito tem relação direta com a qualidade e quantidade de serviços públicos oferecidos pela administração pública, como saúde, educação, cultura, habitação, mobilidade e etc. Quanto menor ou pior for a qualidade desses serviços, menor será a intensidade da cidadania. E quanto menos intensa for a cidadania, menor o acesso a direitos e à qualidade de vida, e maior será a desigualdade.

Nesse sentido, é inescapável reforçar que para se ter uma melhor qualidade de vida na cidade é de fundamental importância que a gestão municipal consiga atingir um patamar mais alto e melhor de serviços públicos e políticas públicas de qualidade, em especial nas periferias. Enquanto isso não acontecer, São Paulo continuará a produzir e reproduzir categorias distintas de cidadania.

Para entendermos essas duas categorias é essencial analisarmos alguns dados do Mapa da Desigualdade sob a ótica da vida comum e concreta, para refletirmos como isso impacta a população, principalmente àquelas territorialmente distantes, entre o centro e a periferia.

Por exemplo, como imaginar que as crianças e adolescentes paulistanos terão o mesmo desenvolvimento cognitivo e de aproximação com a leitura, alfabetização e cultura se a relação de acervo de livros infanto-juvenis é estridentemente desigual na cidade, onde no distrito da Consolação existem 11 exemplares de livros disponibilizados em instituições públicas para cada habitante na faixa etária de 7 a 14 anos, enquanto no distrito de Capão Redondo existem apenas 0,02 livros nas mesmas condições? Isso representa uma desigualdade de 517 vezes entre estes dois distritos. E, ainda, como ficam as crianças e jovens de outros 36 distritos da cidade nos quais não é disponibilizado nenhum livro infanto-juvenil em instituições públicas?

O mesmo ocorre com os adultos. Como pensar que a relação dos paulistanos adultos com a leitura será igual em toda a cidade se no distrito da República são disponibilizados 3,01 livros para cada habitante, enquanto no distrito de Pirituba são apenas 0,01? Isso representa uma desigualdade de 588 vezes. Cabe destaque ainda o fato de que em 37 distritos este indicador é zero, o que demonstra que não existe oferta de livros para adultos em instituições públicas em mais de um terço da cidade.

A desigualdade permanece escancarada quando analisamos a oferta dos demais equipamentos culturais na cidade, em especial a ausência deles nas regiões periféricas. Por exemplo, em 53 distritos não existem centros culturais, casas e espaços de cultura; em 54 distritos não existem cinemas; em 60 distritos não existem museus; em 52 distritos não existem salas de shows e concertos; e, em 42 distritos não existem teatros. Ou seja, em praticamente metade da cidade não são ofertados equipamentos culturais para a população.

Tudo isso somado demonstra que a cidade de São Paulo tem uma significativa oferta de equipamentos culturais, mas estes estão concentrados na região central da cidade, e não distribuídos por todos os territórios, propiciando que toda a população paulistana tenha acesso à cultura perto de casa. E com relação às desigualdades, destacam-se os indicadores de cinema e teatro. Os distritos da Barra Funda e República, ambos na região central da cidade, têm, respectivamente, 8,35 cinemas e 5,92 teatros para cada 10 mil habitantes, enquanto no Capão Redondo existem apenas 0,03 cinemas e em Sapopemba 0,03 teatros, ambos para cada porção de 10 mil habitantes. Isso representa um fator de desigualdade de 240 vezes no caso dos cinemas, e de 170 vezes no caso dos teatros.

Com relação à educação, algumas perguntas são também importantes de serem destacadas. Por exemplo, o que imaginar do futuro dos jovens estudantes de nossa cidade quando observamos, por exemplo, que no distrito do Jardim Ângela 89,3% de todas as matrículas efetuadas nessa região são em escolas públicas, ao passo que no distrito do Jardim Paulista são apenas 6,8%? Isso revela que na periferia o ensino básico é majoritariamente feito pelas escolas públicas, enquanto nas regiões centrais e mais ricas da cidade essa predominância é de escolas privadas. Se as escolas privadas, no geral, apresentam melhor qualidade do que a maioria das escolas públicas – sem aqui generalizar a discussão – o que se pode pensar que esse formato de educação vai produzir no futuro, senão desigualdade? Quando vemos nitidamente que os filhos das famílias mais ricas estudam em escolas privadas, enquanto os filhos das famílias mais pobres estudam em instituições públicas, conseguimos entender porque há tamanha diferença na qualidade da educação entre as instituições públicas e privadas. Essa diferença na qualidade educacional entre instituições públicas e privadas não é natural nem aleatória, ela é um projeto político.

A desigualdade educacional é uma das principais bases da desigualdade na cidade. E se a educação é desigual, será muito difícil, por meio dela, reduzir as desigualdades na sociedade. Isso porque as crianças e jovens que têm acesso a uma educação melhor alcançarão melhores posições em universidades de qualidade, e, consequentemente, melhores empregos e melhor renda.

Esse modelo educacional de São Paulo é, de alguma forma, um dos alicerces do modelo desigual da dinâmica da cidade. O próprio acesso à escola pública é absolutamente desigual nas diferentes regiões da cidade. Por exemplo, enquanto no distrito da República, em média, pais, mães ou responsáveis por crianças demoram 8 dias para conseguir uma vaga em creche, no distrito de Pedreira se leva em média 401 dias. Isso representa uma desigualdade de 48 vezes.

Sobre a questão habitacional, o destaque do Mapa da Desigualdade é a presença desigual de favelas na cidade. Enquanto no distrito de Pinheiros apenas 0,8% dos domicílios são localizados em áreas caracterizadas como favelas, no distrito da Vila Andrade, onde fica localizada a favela de Paraisópolis, 49% dos domicílios estão nessas condições. Isso representa uma desigualdade de 605 vezes. Será coincidência o fato de nas regiões com maior predominância de matrículas em escolas públicas há muito mais incidência de favelas? Por que a precarização da infraestrutura urbana precisa ser acompanhada de uma educação de menor qualidade? Mais uma vez aqui é importante destacar: não é coincidência, é um projeto pensado para funcionar assim.

É notório, quando observamos os dados até aqui, que nas regiões com menos equipamentos culturais os jovens são majoritariamente estudantes de escolas públicas e vivem em áreas com menos infraestrutura urbana, ao passo que nas regiões centrais, onde faltam equipamentos culturais, os mais jovens estudam preferencialmente em escolas privadas e vivem em áreas com mais infraestrutura.

Somado a isso, esse cenário vai acarretar também em uma gigantesca diferença no que tange o acesso à saúde. Por exemplo, com relação aos leitos hospitalares disponíveis na cidade, a desigualdade é bastante significativa. No distrito da Bela Vista, região central da cidade, existem 48 leitos hospitalares públicos e privados disponíveis para cada mil habitantes, enquanto no distrito de São Rafael são apenas 0,03 leitos. Isso representa uma desigualdade de 1.251 vezes. E vai refletir, sobremaneira, na capacidade de atendimento e cuidado da população com relação à sua saúde. Um dos reflexos disso são os índices de mortalidade infantil. O Mapa revela ainda que no distrito do Butantã não houve nenhum caso na região em 2017, ao passo que no distrito de Artur Alvim foram 21 óbitos de crianças menores de um ano em cada mil crianças nascidas vivas de mães residentes.

Outro dado alarmante é o de que o índice de pré-natal insuficiente também acompanha essas grandes desigualdades. Enquanto no distrito de Moema apenas 4% dos bebês nascidos vivos são filhos de mães que fizeram menos de 7 consultas de pré-natal, no distrito de Itaim Paulista esse índice foi de 31%. E o mesmo acontece com relação à incidência de gravidez na adolescência, o Mapa da Desigualdade mostra que em Parelheiros 17% dos bebês nascidos vivos no território eram filhos de mães com 19 anos ou menos, enquanto no distrito de Jardim Paulista eram apenas 0,7% dos recém-nascidos.

Todas estas diferenças impactam diretamente o tempo de vida médio da população. Enquanto no distrito do Jardim Paulista a idade média ao morrer é de 81 anos, no distrito de Cidade Tiradentes essa idade é de 58 anos, o que representa uma diferença de 23 anos a menos de vida entre quem vive nas áreas nobres da cidade e quem reside nas periferias. Será coincidência o fato de ser nas regiões periféricas onde os jovens têm menos acesso a equipamentos culturais, menor infraestrutura urbana, menor acesso à educação de qualidade, menos acesso à saúde e viverem em média 23 anos a menos do que as pessoas que vivem nas regiões centrais?

Por fim, os dados relacionados ao emprego apresentam também alguns importantes destaques no Mapa de 2018. Por exemplo, com relação à oferta de trabalho formal na cidade, enquanto no distrito da Barra Funda existem 59 postos de emprego formal para cada 10 habitantes em idade ativa (idade maior ou igual a 15 anos), no distrito de Cidade Tiradentes são apenas 0,2 postos de emprego formal para a mesma proporção. O que representa uma desigualdade de 246 vezes. Esse dado demonstra que há uma forte concentração de postos de trabalho na região central da cidade, em detrimento das regiões periféricas.

Dessa forma, conforme afirmamos no início deste texto, fica evidente que a cidade de São Paulo, da forma como ela foi e é estruturada hoje do ponto de vista de suas políticas públicas e serviços públicos, criam duas categorias distintas de cidadania.

Nas regiões centrais, consideradas áreas nobres da cidade, a grande oferta de equipamentos culturais, serviço de saúde, infraestrutura urbana, postos de trabalho com carteira assinada, equipamentos privados de educação, entre outras coisas, acabam por garantir uma melhor qualidade de vida, e, inclusive, um tempo médio de vida bastante superior ao das demais regiões da cidade. Isso caracteriza uma cidadania de alta intensidade para seus moradores.

No entanto, nas regiões periféricas os dados revelam o oposto, uma completa ausência de equipamentos públicos e ação do Estado, conferindo a seus moradores um tempo médio de vida até 20 anos menor do que o dos moradores das regiões centrais. O que caracterizamos aqui como uma cidadania de baixa intensidade.

Isso não significa dizer que uma região da cidade é ‘melhor’ do que a outra, mas sim que a cidade de São Paulo não consegue garantir padrões minimamente semelhantes de qualidade de vida para todos os seus moradores, gerando essas duas categorias de cidadania.

Somado a isso, um dos elementos mais importantes e que é imprescindível de compor nessa nossa análise é o fato de a cidade de São Paulo registrar proporções absolutamente diferentes de população negra nas diferentes regiões da cidade. Enquanto no chamado ‘centro expandido’ da cidade não passa de 15% a população que se autodeclara preta ou parda, nas regiões dos extremos leste, sul e norte da capital esse percentual chega a 60%. Isto é, não tenhamos dúvida que essas duas categorias de cidadania que a cidade confere a seus habitantes carregam consigo o elemento do racismo estrutural. A atuação do poder público é mais precário nas áreas com maior proporção de população negra, e isso não é mera coincidência.

Nesse sentido, é preciso reforçar que em praticamente todos os indicadores analisados pelo Mapa da Desigualdade a simetria entre o centro e a periferia desenham a qualidade e o acesso aos serviços públicos de maneira distinta. Não existe coincidência neste fato, nem é ele algo natural. A desigualdade na cidade de São Paulo é um projeto, e assim precisa ser compreendido.

Quem desenha a cidade? Quem define suas políticas públicas? Quem pensa sobre o desenvolvimento social e econômico do espaço urbano? Essas perguntas são chave para compreendermos as razões da brutal desigualdade que acomete São Paulo.

Ter, na maior capital da América Latina, dois padrões completamente distintos de cidadania é inaceitável, tanto do ponto de vista ético quanto do ponto de vista político, social e econômico.

Mais do que nos organizar e nos mobilizar por mais e melhores políticas públicas, precisamos também lutar e disputar um outro projeto de cidade, um outro modelo de desenvolvimento. Sabemos que todas as políticas públicas reproduzem o projeto de desenvolvimento da cidade. Se os serviços públicos estão montados da forma como vimos no Mapa da Desigualdade, é porque este é o modelo de desenvolvimento da capital paulista: um projeto de cidade desigual, racista e simetricamente desenhado para conferir à população das periferias uma outra categoria de cidadania que não àquela que detém quem vive nas áreas centrais da cidade.

Para uma outra São Paulo, precisamos de um outro modelo de desenvolvimento. Um modelo que tenha a periferia como o centro da produção, reflexão e gestão dos serviços públicos da cidade. Um modelo que tenha a redução das desigualdades e o combate ao racismo como elementos centrais de toda a administração municipal. É preciso ter nítido que São Paulo é uma cidade em disputa, um projeto em disputa, e o ponto inicial dessa peleja é pôr fim ao seu atual modelo de desenvolvimento, em defesa da cidadania, da qualidade de vida e da dignidade humana. Mãos à obra para construir um outro modelo de desenvolvimento para uma outra cidade.