Rede Ubuntu de Cursinhos Populares: desafios e potencialidades da educação popular em M’Boi e região
Já há muito a educação é considerada eixo estratégico para o futuro de nosso país, bem como para qualquer transformação social e muito já foi feito, por diferentes atores sociais, em diferentes épocas, em favor de sua promoção. Também é possível ver que, apesar das desigualdades do sistema educacional brasileiro atual, composto por organizações particulares e públicas que se diferenciam muito em diversos aspectos, a educação continua sendo percebida como um dos poucos caminhos que oferece efetivas possibilidades de desenvolvimento pessoal (ou até coletivo) em favor da construção de um futuro melhor para jovens e não jovens. Mesmo num contexto de crise política, institucional e social como o atual, que tende a restringir direta ou indiretamente as perspectivas de futuro da população, individual e coletivamente, a educação é uma das poucas referências capazes de sobreviver ao descrédito generalizado que tende a prevalecer neste cenário, ainda que seja em torno de um projeto de formação individual desinvestido de perspectivas coletivas de transformação social.
O que não impede que iniciativas desenvolvidas por organizações sociais mais ou menos formalizadas busquem construir alternativas. Este é o caso da Rede Ubuntu de Cursinhos Populares, que articula atualmente em cinco unidades da região atividades junto a cerca de 300 jovens, orientados pela ideia de educação popular. Desde 2017, por meio da Estação de Pesquisa M’Boi, desenvolvemos parceria entre a Rede, a EAESP/FGV e a UFABC para o desenvolvimento de ações compartilhadas que possam, a partir do diálogo entre saberes, contribuir para o enfrentamento de questões públicas locais identificadas pelas próprias organizações sociais que atuam no território. Por meio deste trabalho, procuramos entender a prática de cursinhos populares em diálogo com estudos realizados sobre o tema no Brasil, suas características, desafios e potencialidades, com foco na experiência da Rede Ubuntu.
Cursinhos Populares no Brasil
Em revisão bibliográfica sobre o tema, pudemos investigar as origens de experiências de cursinhos populares no Brasil. Seu surgimento se dá como fruto dos movimentos sociais, vinculado à demanda de acesso ao ensino superior; o primeiro deles, o cursinho da Poli/USP, em 1948. Nos anos 1990, houve um grande aumento do número de unidades na cidade de São Paulo, passando de uma para 15 unidades em 2000 e chegando a 60, em 2017.
Encontramos a referência a dois tipos de cursinhos: os alternativos - usualmente vinculados a prefeituras e universidades, que, ao nascerem, não praticam a cobrança de mensalidades, porém, frequentemente desvinculam-se de suas instituições de fundação e passam a cobrar pelo serviço, abrindo mão de sua estrutura horizontal e tornando-se uma pequena empresa; e os cursinhos populares - aqueles que não praticam a cobrança e mantêm seus ideais de inclusão e socialização, com estrutura igualitária e articulação com a comunidade ao seu redor. Entre uns e outros, notam-se características comuns nestas iniciativas, tais como a organização em torno da prática de discussão coletiva, a presença de estruturas de gestão horizontais e a referência recorrente à questão ética, da cidadania e da igualdade em seus objetivos e diretrizes. Também é comum que ex- alunos, quando aprovados, retornem para realizar atividades nos cursinhos, sejam administrativas ou ministrar aulas.
Rede Ubuntu e o Território de M’Boi: desafios e parcerias
A Rede Ubuntu de Cursinhos Populares surge em 2014, pela ação de professores da rede pública e com o intuito de reduzir a defasagem de aprendizagem presente no ensino público de jovens moradores de regiões ditas periféricas e favorecer seu acesso ao ensino superior. Sob o lema “eu sou porque nós somos” (significado associado à palavra ubuntu, de origem sul-africana), a Rede se organizou em torno do objetivo de promover o senso de coletividade entre professores e estudantes, ao entender que este é o caminho privilegiado para o processo de aprendizagem dos alunos, bem como para a formação cidadã.
Atualmente, a Rede conta com cinco unidades em diferentes bairros da região de M’Boi: Santo Dias, Guarany, Rosa Luxemburgo, Casa de Cultura M’Boi Mirim e Alan Soares (esta última localizada no município de Itapecerica da Serra, em bairro conectado territorial e socialmente à M’Boi). Há autonomia de gestão operacional de cada unidade, a partir de seus respectivos coordenadores/as; as estratégias de gestão e práticas pedagógicas são estabelecidas coletivamente e, dada a autonomia das unidades e seus diferentes contextos, resultam num conjunto de ações nem sempre homogêneas.
Na busca por um maior conteúdo pedagógico, a Rede adotou pela primeira vez, em 2018, o uso de apostilas, que foram confeccionadas pelos próprios professores e adotadas por três unidades. Além disso, conta atualmente com parcerias com outras instituições, como por exemplo o cursinho popular da Fundação Getúlio Vargas, que faz a doação de livros e materiais didáticos aos pólos, além da troca de experiências. Suas aulas são realizadas unicamente aos sábados e os eventuais simulados, aos domingos, atendendo cerca de 300 jovens na região em 2019.
Dentre os principais desafios para o desenvolvimento da ação estão a dificuldade financeira enfrentada por jovens estudantes (para deslocamento, alimentação e apoio familiar) e pela rede como um todo (para material didático e de estrutura), a dificuldade de comunicação entre as unidades e os familiares, dada a sobrecarga dos professores em suas atividades profissionais e com o cursinho. No entanto, o maior desafio identificado pela Rede, assim como para outros cursinhos populares e privados, é a chamada “evasão” dos estudantes durante o ano, sem justificativa clara ou enunciada. Em 2018 este montante chegou à metade das vagas da rede Ubuntu, que foram preenchidas por novos estudantes, como se costuma fazer, mas que chegam em defasagem em relação aos demais, criando desafios para o processo de aprendizagem geral das turmas.
Para estudar esta questão e, junto com representantes da Rede, compreendê-la melhor, foram realizados em 2018 levantamentos de dados quantitativos a partir de questionários formulados pela Rede e discutido com nossa equipe, os quais foram respondidos pelos estudantes. Além disso, realizamos visitas às unidades ao longo deste ano, acompanhando aulas, conversando com professores, jovens e coordenadores/as, a fim de entender o cotidiano das atividades e as dificuldades enfrentadas pelos alunos em uma busca pela aprovação no vestibular.
Buscamos desenvolver este trabalho tendo como diretrizes a análise dos desafios e potencialidades da Rede e, para tanto, compartilhamos os dados durante o processo, por meio de conversas e de um debate participativo com jovens e professores, a fim de confirmar, complementar ou rever seu conteúdo.
Quem são os/as jovens atendidos pela Rede Ubuntu?
Dos 216 respondentes, mais de 3⁄4 são mulheres (76,4%). Duas hipóteses são levantadas frente à predominância feminina: primeiro, que entre as famílias da região é comum a entrada dos jovens homens no mercado de trabalho mais cedo, bem como a expectativa (familiar ou do próprio jovem) de que isso ocorra, o que restringe a opção pelo ensino superior. A segunda hipótese é a influência materna, tendo em vista que mais da metade das mães das jovens da Rede têm ensino superior, ao contrário dos pais, que possuem escolaridade menor. Além disso, vale investigar melhor se jovens do gênero feminino percebem a formação universitária como alternativa efetiva ao trabalho doméstico, tradicionalmente compartilhado entre as mulheres das famílias.
A grande maioria das/os jovens cursa ou cursou todo o Ensino Fundamental e Médio em escolas públicas (89,5%). Em geral, ainda estão cursando o ensino médio (61,5%), com ampla maioria no 3° ano; sendo que 19% de todos os alunos fez ou está fazendo ensino técnico. Do ponto de vista da renda familiar das/os jovens, o levantamento identificou que, para 73,3%, a referência é de até dois salários mínimos, sendo que apenas 2,8% deles têm uma renda superior a 4 salários mínimos. Além disso, a ampla maioria das/os jovens indica não contribuir financeiramente para as despesas domésticas (89%).
Potencialidades da Rede Ubuntu
Como potências da Rede, identificadas ao longo deste trabalho realizado durante o ano de 2018, destacam-se a dedicação de alunos, professores e coordenadores num projeto comum, estabelecendo uma rede de relações coesa e mobilizadora. A autonomia e o desprendimento formal nos processos de gestão também são destacados, permitindo ao coletivo de professores e coordenadores conduzir suas atividades conforme os acordos horizontais entre eles estabelecidos a cada etapa, de modo dinâmico e coletivizado. Tal capacidade também se nota em ações exteriores às atividades de gestão, como ocorre na busca de apoio e alternativas para suas restrições financeiras e materiais, como mostra a viabilização do espaço para as aulas (que ocorre em igrejas, associações comunitárias ou ONGs locais).
Considerações finais
As características estudadas em pesquisas sobre os cursinhos populares no Brasil condizem com as observações das unidades da Rede Ubuntu: o retorno de ex-alunos para dar aulas ou ajudar na organização dos polos, e a estrutura horizontal de gestão. Questões relativas às dificuldades de frequência dos alunos devido a questões financeiras também são relatadas por membros de outros cursinhos populares com os quais possuem parceria.
Os desafios para o desenvolvimento da ação não são poucos. O cotidiano de professores e coordenadores demonstra isso: alguns são graduandos, outros graduados e frequentemente atuam como professores na rede pública de ensino, muitas vezes com clara queixa sobre as dificuldades lá enfrentadas. Restrição orçamentária, dificuldade de diálogo, fragmentação do horário entre diferentes escolas são algumas das justificativas apresentadas. A atividade que realizam na Rede Ubuntu é voluntária; mesmo assim, professores demonstram de modo geral entusiasmo e compromisso com as atividades lá realizadas, como projeto socioeducativo, e, para muitos, é uma forma de retribuição a algo recebido - seja no ensino superior que tiveram, no ensino médio na figura de algum professor ou mesmo num cursinho popular.
Os desafios enfrentados pelas/os jovens que elegem a graduação em curso superior como perspectiva de formação também são vários: falta de apoio familiar; falta de um ambiente favorável aos estudos; rotina semanal sobrecarregada, dificuldade para os deslocamentos e cansaço durante as aulas; pressão na família por trabalhar; estranhamento frente ao ensino universitário (relatam a sensação de o ensino superior ser algo que não lhe pertence). Tais elementos configuram um campo de vulnerabilidades a serem enfrentadas cotidianamente por jovens que, em função disso, nem sempre conseguem frequentar as aulas e/ou manter a dedicação aos estudos.
Mas há importantes pontos de apoio. Primeiro, a relação entre pares: buscam o cursinho popular em geral a partir de vínculos de amizade com aqueles que teriam se proposto a estudar juntos ou com aqueles que teriam aceito acompanhá-los, compartilhando desafios. São assim vínculos de solidariedade estabelecidos horizontalmente em pequenos grupos de 3 a 5 jovens, em geral, que perduram durante o processo ou se fragilizam com a saída de alguém do grupo, que dão a primeira sustentação para um percurso de estudos que se mostra exigente para a maioria dos jovens moradores da região. Outro importante ponto de apoio de cada jovem é a relação que possuem com os professores, seja um em particular ou o conjunto deles, em função da confiança estabelecida: confiança na proposta, no conteúdo apresentado e no compromisso com o trabalho. Numa roda de conversa no Fórum Social Sul realizado em 2017, observamos na apresentação de alguns professores depoimento de gratidão e admiração que muitos alunos lhes endereçavam. Estes, por sua vez, resgatavam aqueles que haviam servido de referência e modelo em seu percurso de vida e formação; lembravam de outros professores que haviam tido ou de uma liderança dos movimentos sociais. Parece existir, portanto, uma rede de identificação intergeracional estabelecida entre diferentes moradores que serve de lastro na trajetória das novas gerações.
Se a chamada “evasão” continua sendo uma questão presente de muitos, ela parece estar relacionada a aspectos como: importância financeira e simbólica que o trabalho remunerado encontra nas comunidades e famílias dos jovens estudantes; dificuldade de aprendizagem que alunos encontram diante de um conteúdo de aprendizagem extenso, complexo e distante das realidades locais; dificuldades operacionais de deslocamento, custo de transporte, alimentação e material de apoio; assim como a falta de apoio entre pares da comunidade e na família.
Para oferecer aos jovens que os procuram maiores possibilidades para o enfrentamento de seus desafios, a Rede Ubuntu, assim como outros cursinhos populares, segue se reinventando. Visitas às universidades, feiras de profissões, intercâmbio com outros cursinhos são atividades realizadas a partir das redes de solidariedade construídas nos territórios e da determinação de seus membros, bem como de ex-alunos que se mobilizam para tanto. É um campo de enfrentamento frente a uma tendência inercial que, na cena social, tende a reproduzir lugares pré-estabelecidos, fazendo os desfavorecidos serem ainda mais desfavorecidos e deixando aos favorecidos os lugares de maior reconhecimento social. O projeto dos cursinhos populares é, portanto, fruto de um caminho improvável e custoso, mas que vem deixando marcas significativas nos sujeitos envolvidos, professores e alunos, bem como na própria região, tendo em vista o histórico de lutas sociais que esta possui desde o início de sua formação. Desafio é, também, o de contribuir com a visibilidade de ações como estas, que demonstram as potências de trabalhos desenvolvidos por organizações sociais locais em regiões como a de M’Boi Mirim e a sua contribuição para a transformação de suas realidades.
Para saber mais:
CAMARGO, Fernanda Furtado. (2009) Cursinhos pré-vestibulares populares e o caso da UNESP: alguns condicionantes à sua criação e transformação. 2009. 118 f. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara,
de Castro, Clovis Alexandre. (2011) Movimento socioespacial de cursinhos alternativos e populares: a luta pelo acesso à universidade no contexto do direito a cidade (Tese de Doutorado, Universidade Estadual de Campinas.