FÓRUM EM DEFESA DA VIDA: 20 anos de resistência pela vida dos/as jovens que vivem nas periferias da zona sul de São Paulo
"Gente simples, fazendo coisas pequenas, em lugares pouco importantes, consegue mudanças extraordinárias".
Provérbio Africano
Como é viver em dois dos distritos mais vulneráveis e populosos das periferias da zona sul da cidade? Como é viver num pequeno “município” - M’ Boi Mirim – que hoje contabiliza aproximadamente 600 mil pessoas (distrito do Jd. Ângela 295.434 e distrito do Jd. São Luís 267.871 - Censo do IBGE, 2010) e é identificado como sendo uma das regiões com os mais altos índices de violência do país?
Como é viver e ter de enfrentar cotidianamente a violência indiscriminada das polícias e a insegurança em decorrência da ação de grupos associados ao crime organizado?
Como é viver sob permanente ameaça de perda da moradia conquistada com muito sacrifício por estar numa região, onde grande parte dos loteamentos foram levantados em áreas consideradas de proteção ambiental ou áreas de mananciais?
Segurança, justiça, direitos humanos, saúde, moradia digna, educação, cultura são temas complexos e marcam profundamente a longa história de resistência dos movimentos sociais e das luta populares na zona sul da capital paulista, especialmente, quando colocamos em debate a “presença” ou “ausências” do poder público em setores fundamentais de políticas públicas e de garantia de direitos de cidadania para as milhares de famílias que ali vivem.
No quadro abaixo podemos verificar dados oficiais atualizados desta região.
Quadro 1: Dados sobre Proteção Social, Moradia, Violência e Educação
1) Em relação ao Cadastro Único, o município de São Paulo contava, em 2013, com 520.515 famílias em situação de risco e/ou vulnerabilidade social. Os distritos que concentravam os maiores percentuais/número de famílias cadastradas (FC) eram: Grajaú, com 29.180 FC) (5,6%); Jardim Ângela com 25.496 FC (4,9%); Brasilândia om 23.627 FC (4,5%), Capão Redondo com 23.453 FC (4,5%) e Jardim São Luís com (3,8%).2) Os domicílios sem sistema adequado de canalização dos dejetos sanitários estão fortemente concentrados nos distritos periféricos da zona sul de São Paulo. Marsillac, Parelheiros, Pedreira e Jardim Ângela eram aqueles distritos em pior situação e assim permaneceram em 2010.
3) Em 39 distritos, os jovens sem instrução ou com fundamental incompleto estão acima da média do município (20,5%), sendo que em sete destes distritos o percentual se aproxima ou está acima de 30%, quais sejam: Vila Andrade (38,6%), Marsilac (32,9%), Jardim Ângela (32,4%), Parelheiros (30,1%), Lajeado (29,2%), Grajaú (27,2%) e Cidade Ademar (27,1%).
4) Em relação à mortalidade por grupos etários jovens (15-19; 20-24; 25-29) e localidade da residência da pessoa falecida, as subprefeituras de Capela do Socorro, M' Boi Mirim, Freguesia do Ó/Brasilândia, Campo Limpo e Cidade Ademar concentram cerca de 40% das mortes observadas nos três grupos etários, para ambos os sexos, nos anos analisados – 2005 e 2010.
5) A maior parte dos óbitos por causas externas está relacionada a eventos ou atos violentos (acidentes de trânsito, agressões, homicídios, entre outros) e quase a totalidade dos casos de óbitos por homicídios e intervenções legais, na população de 15 a 29 anos, é de homens jovens.
Fonte: IBGE/2010
Seria possível, vivendo nessas condições, fomentar práticas cotidianas que dêem respostas efetivas para redução das violências e da opressão por parte do poder público? Seria possível uma pedagogia capaz de alimentar a esperança num futuro melhor? Como educar para a paz em tempos de injustiça e violência? São essas, algumas das perguntas que nortearam o nosso argumento.
Voltando no tempo: o Jardim Ângela nos anos 1980 e 1990
Em 1970, o viajante que atravessava o rio Pinheiros pela ponte do Socorro, região de Santo Amaro, pela Estrada do M’Boi Mirim, iniciava um trajeto com características de transição da zona urbana para a rural, onde alguns bairros como o Jardim São Luís e Figueira Grande apenas começavam a despontar. A represa do Guarapiranga de então se espraiava com liberdade, recebendo às suas margens muitas chácaras de lazer. O entorno das estradas do Campo Limpo e de Itapecerica tinha ocupação praticamente idêntica.
Eram tempos de ditadura militar no país e, tanto a capital paulista como o próprio estado, estavam nas mãos de governantes autoritários, sem nenhum compromisso com os problemas sociais e muito menos com o futuro da biodiversidade local. O empenho dos governantes estava direcionado para a especulação imobiliária e o clientelismo político imediatista e inconsequente, prática que na ocasião atendia muito bem aos interesses do grande capital na região.
Com a crise de desemprego dos anos 1980, provocada pelo avanço do processo de reestruturação produtiva que atingiu o parque industrial do país, fruto da tal de globalização da economia e da hegemonia das políticas neoliberais, o “velho” parque industrial de Santo Amaro foi bruscamente reduzido, deixando atrás de si muitos problemas, entre eles o da falta de trabalho para a população operária da região, que em grande parte já estava vivendo do outro lado do rio Pinheiros.
Organização popular
"A cabeça pensa onde os pés pisam”
A região do Jardim Ângela também é conhecida pela forte organização popular desde o início dos anos 70, com o nascimento das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) da Igreja Católica e dos Clubes de Mães. A reflexão, num diálogo entre a Bíblia e a vida do dia a dia, fez nascer fortes lideranças na região. Foi naqueles anos, o berço de fortes lutas e de reivindicações por água, luz, esgoto, escolas, creches, moradias, transporte e do grande movimento contra a carestia, que mobilizou mais de um milhão de assinaturas, levadas até Brasília, em 1978. Ainda nesse ano, elegemos os primeiros candidatos populares: o deputado federal Aurélio Peres e a deputada estadual Irma Passoni.
Nesse período, as regiões do M’Boi Mirim e do Campo Limpo se constituíram em verdadeiro celeiro, por exemplo, da Oposição Sindical Metalúrgica de São Paulo, onde despontaram nomes como o de Santo Dias da Silva – morto pela polícia militar na porta de uma fábrica da região, durante uma greve, em 1979. Santo também era militante da Pastoral Operária, uma das inúmeras organizações de base da Igreja Católica Progressista enraizada na área.
Em 1979, Maria Felipe[1] e o marido, Ivo, ajudaram a fundar o Movimento de Moradia, uma organização de pessoas que reivindicava a urbanização das favelas no Jardim Ângela. Maria Felipe faz jus ao nome que tem. Como na música de Milton Nascimento, é daquele tipo que ri quando deve chorar, que traz na pele a marca do sofrimento, mas não perde a "estranha mania de ter fé na vida". Sua trajetória de luta social começou na década de 1970, nas comunidades eclesiais do Jardim Ângela, periferia da zona sul de São Paulo. Maria ajudou a criar um clube de mães local, que exigia do poder público melhores condições para creches, escolas, postos de saúde, transporte, entre outros.
O grupo dedicava o tempo livre para construir casas no esquema de mutirão. Entre suas conquistas, está a criação do Parque Europa I e II, com mais de 1200 apartamentos construídos, em parte por empreiteira contratada pela prefeitura e em parte em mutirão. O movimento tirou famílias das áreas de risco e deu casa própria a muitos que sofriam para pagar aluguel, melhorando suas vidas.
No final dos anos 80 e início da década de 1990, impulsionados pela gestão da prefeita Luiza Erundina e do Secretário de Educação da época - Paulo Freire -, a alfabetização para jovens e adultos ganhou muita força em nossa região. Um exemplo muito importante para nós são as atividades do Movimento de Alfabetização para jovens e adultos (MOVA) ofertadas naquela época e que estão até hoje presentes nas ações da Sociedade Santos Mártires.
Por outro lado, a violência nos anos 1980 e 1990 cresceu de modo assustador, inclusive na sua vertente justiceira. Foi nesse contexto, que gente como o Cabo Bruno fez fama e espalhou o terror. Nesse cenário, quando um jovem era assassinado numa das regiões nobres da cidade, havia uma comoção geral; já as chacinas de jovens e execuções policiais ocorridas na periferia eram tratadas com indiferença, quando não como profilaxia, por parte das autoridades e setores da imprensa.
Na cidade de São Paulo havia uma mentalidade de dois pesos e duas medidas. Quando era assassinado um jovem, residente em área considerada nobre, a cidade inteira questionava, mas quando era um jovem da periferia, muitos suspiravam aliviados, significando “um a menos para nos assaltar ou incomodar”. Nos perguntávamos na época: “quais são as perspectivas para a juventude do Jardim Ângela?” Com as consciências tranquilizadas, tudo ficava por isso mesmo. “Nenhum culpado. Nenhuma solução”.
Em maio de 1996, um alerta ganhou as manchetes: o Jardim Ângela fora considerado pela ONU (Organização das Nações Unidas) o núcleo urbano mais violento do mundo. As estatísticas apontavam 120 assassinatos/ano para cada 100 mil habitantes, predominando as vítimas entre 15 e 25 anos. No ano anterior, as estatísticas indicavam que Cali, na Colômbia, era o lugar mais violento com 80 assassinatos por 100.000 mil habitantes. Era comum encontrarmos corpos de jovens mortos pela violência nas ruas daqui.
Uma interrogação que fazíamos naquela época era: “não basta a gente ficar enterrando os corpos, nós temos que fazer alguma coisa, pois não podemos aceitar a morte de toda essa juventude”.Argumentávamos que enquanto a maioria estava recuando, colocando grades e portões mais fortes e fazendo das suas casas uma cadeia, “nós estamos dando mais espaço para o crime”.
Embora aqui os desafios fossem outros e a luta tivesse possivelmente características bem diferentes daquelas que a parcela organizada da comunidade havia travado no passado (décadas de 60 e 70), a questão não podia continuar sendo chorar as mortes de tantos jovens das redondezas. “Nós precisávamos evitá-las!”.
Depois de muitas reuniões e conversas, sob a liderança da Sociedade Santos Mártires, das coordenações das CEBS na região e do CDHEP (Centro de Direitos Humanos e Educação Popular), além de outras instituições e movimentos sociais comprometidos com essa causa, nasceu a ideia de fazermos a primeira Caminhada Pela Vida e pela Paz. Definida para o dia 2 de novembro de 1996; Dia de Finados. A Caminhada partiu de três pontos distintos em direção ao Cemitério São Luís, onde a maioria das vítimas assassinadas era enterrada. Já nesse primeiro ato, contamos com a adesão de aproximadamente cinco mil pessoas.
Mas e depois disso? Quais seriam os próximos passos? Surgiu, então, o Fórum em Defesa da Vida pela superação da violência, para o qual foram chamados a participar, além da comunidade local e atores políticos envolvidos com o temas em questão (segurança pública, saúde, justiça, educação, direitos humanos), forças que pudessem contribuir para a criação de uma rede de proteção e monitoramento no vasto campo dos Direitos Humanos e promoção da Cidadania.
Composto por integrantes de diferentes igrejas cristãs, escolas públicas e privadas, associações de moradores, movimentos sociais, entidades e organizações do campo social no território e autoridades públicas, o objetivo norteador deste Fórum sempre foi promover ações fundamentadas nos princípios da cultura de paz e que tivessem como horizonte a superação das injustiças sociais e das violências no cotidiano para moradores e comunidades da região do Jardim Ângela e Campo Limpo.
Fórum em Defesa da Vida pela superação da violência
“Antes acender um fósforo do que amaldiçoar a escuridão”.
Ao longo desses 20 anos de história, o Fórum já promoveu inúmeros debates, seminários, rodas de conversa, audiências públicas; participou ativamente de muitas caminhadas e manifestações e ajudou na elaboração e realização de dois Tribunais Populares. O primeiro Tribunal Popular ocorreu no ano de 2002 e teve como foco de discussão as questões sobre Saúde e Segurança Pública. O segundo Tribunal Popular ocorreu no ano de 2005 e teve como foco de discussão as questões sobre Educação, Trabalho e Cultura; Três ações civis públicas foram instauradas por conta dessas atividades;
Estes que deram subsídios para três Ações Civis Públicas, nas quais o Estado foi responsabilizado e sentenciado pela sua omissão em setores fundamentais (segurança pública, justiça, educação e saúde) para manutenção de uma vida digna para a população dessa região. Em decorrência das Ações Civis públicas podemos citar a conquista do CEU na rua Feitiço da Vila e a construção do Hospital de M'Boi Mirim. Um pouco mais tarde, contra a SABESP também movemos uma Ação Civil Pública, mas que está engavetada até hoje, isso foi uma articulação entre Sociedade Santos Mártires, CDHEP e ISA (Instituto sócio ambiental), por causa do esgoto despejado na represa.
O Fórum em Defesa da Vida possibilita o encontro entre população local e pessoas ligadas aos governos locais, secretarias, promotores públicos, etc. Aqui fazemos diagnósticos e discutimos sobre as causas e consequências da violência na vida das pessoas. Buscamos entender como a violência é produzida no cotidiano. Além disso, consideramos que o Fórum é um espaço privilegiado para lutarmos por políticas públicas, por dignidade humana e por melhorias para as condições de vida dos moradores e das famílias do Jardim Ângela e proximidades.
Destacamos algumas conquistas do Fórum: a implementação dos projetos de bases de policiamento comunitário na região; a instalação de 2 CICs (Centro de Integração e Cidadania); a construção do Hospital M’ Boi Mirim; e a construção e ampliação dos equipamentos públicos nas áreas da educação, cultura (ex: CEU Feitiço da Vila) e assistência social.
Entendemos que a partir da articulação do Fórum em Defesa da Vida, junto com o CDHEP do Capão Redondo e da Sociedade Santos Mártires do Jardim Ângela entre outras entidades e organizações da sociedade civil com o poder público, houve de fato uma melhora significativa das condições de vida para os moradores da região. Acreditamos que: “para se combater as injustiças e violências no cotidiano se faz necessário uma política integrada entre governo e sociedade civil que possibilite aos moradores das regiões mais vulneráveis participarem ativamente dos processos decisórios na implementação e controle social das políticas públicas”.
Um dia me perguntaram: quais são as palavras do Evangelho que nos motivam? Respondi: “amai-vos uns aos outros; ter vida em abundância; a paz esteja convosco; e, não tenhais medo”. São as palavras chaves do Evangelho, pois se você pegar essas palavras, acho que elas influenciaram e influenciam até hoje o FDV e a Sociedade Santos Mártires e precisam influenciar também a Paróquia.
Outros princípios nos quais acredito são os da Cultura da Paz. Foram declarados pela ONU em 2000. Proclamam: “respeitar a vida”; “rejeitar a violência”; “ser generoso”; “ouvir para compreender”; “preservar o planeta”; “reconstruir a solidariedade”. Esses seis princípios nos oferecem uma visão global e local. Falam de princípios que, na prática, devem estar interligados. Acho que eles até podem gerar uma espiritualidade; uma motivação para todas as coisas e são princípios que nos motivam e orientam nossas ações.
A experiência com o Fórum em Defesa da Vida deu frutos e trouxe novos ensinamentos, que vêm sendo aperfeiçoados, tendo recebido grande reforço do Fórum Social Mundial, que inspirou a criação do Fórum Social Sul. Nascido no Jardim Ângela nos moldes do FSM, o Fórum Social Sul, em sua primeira edição, em 2004, contou com sete mil participantes. Sua organização é muito flexível, e ele funciona como uma praça de ideias a partir do tema “uma outra periferia é possível, necessária e urgente”.
Neste Fórum, aparecem os grupos de teatro, grupos de dança, enfim, grupos envolvidos com a cultura local. Criam-se espaços para circulação de ideias e encontro das pessoas, que buscam novidades. Muitas vezes convidamos pessoas de fora. Acho que em todas as edições desses Fóruns foram incluídos temas como: educação, juventude, saúde, meio ambiente, mobilidade etc, sempre num sentido de debatermos as bases da democracia participativa e de uma cidadania ativa.
O Fórum Social Sul pode ser visto como um espaço de articulação da sociedade civil organizada na e para a região não apenas do Jardim Ângela, mas incluindo aqui Capão Redondo e Campo Limpo, assim como Cidade Adhemar, Grajaú, Taboão da Serra, Embu etc. Na nossa avaliação, esse Fórum tem sido muito positivo para o fortalecimento dos vários grupos, coletivos e fóruns locais. Foi a partir desse trabalho de articulação que surgiram outras iniciativas como o Fórum da Assistência, o Fórum da Educação, o Fórum da Criança e Adolescente, o Fórum da Inclusão, Fórum de Pesquisadores, etc. Podemos dizer que esses outros Fóruns são como desdobramentos de uma metodologia criada por nós, mas que necessita ser independente do poder público e estar em espaços constituídos pela e nas comunidades. O Fórum Social Sul ainda está ativo, e continua a acontecer a cada dois anos.
Em 2013, organizamos a quinta edição do Fórum Social Sul. A ideia foi discutir sobre: “a cidade que temos e a cidade que queremos?” Como, por exemplo, “a segurança que temos e qual a segurança que queremos?” O interessante foi apresentar o que a região discute, para depois incluir as pessoas para o debate nas mesas. É um pouco inverter a lógica das palestras: em vez de alguém despejar suas ideias em cima de nós; somos nós, a população, que despeja suas ideias acerca da cidade, da educação, da saúde e da justiça que queremos!
Tomando como exemplo a fala de Chico Whitaker: “não devemos tirar conclusões específicas, mas considerar a importância do fórum como espaço para juntar ideias, estabelecer pontes e novas articulações, não apenas tirar conclusões. O fundamental é estar ali”.
Após 20 anos de resistência: as lutas continuam
"Ângela, Vila Morena, Terra de Solidariedade”
Mesmo com algumas conquistas, nós avaliamos que ainda é insuficiente o número de equipamentos sociais que prestam atendimento à população, sejam nos setores da assistência social, educação, cultura, segurança pública, entre outros. E que muitos dos bairros ainda estão em situação de extrema vulnerabilidade social, o que nos impõe desafios na luta pela garantia de direitos, justiça social e na promoção de melhores condições de vida e dignidade para todos e todas do Jardim Ângela e proximidades.
Depois de ter sido considerada a região mais violenta do mundo pela ONU, o Jardim Ângela pode celebrar uma conquista histórica: segundo levantamento da Fundação Seade, publicado em julho de 2005, entre 2000 e 2004, a taxa de homicídios caiu mais de 45%, indo de 118,31 para 64,5 homicídios por 100 mil habitantes. Uma das explicações para essa redução expressiva nas taxas de mortalidade por homicídios (TMH) encontra-se na análise feita por estudiosos e pesquisadores do campo da violência.
Entendemos que as iniciativas desenvolvidas no Fórum em Defesa da Vida mostraram que a mobilização comunitária pode ser considerada como um dos fatores responsáveis por essa expressiva redução nos índices sobre homicídios. Ou seja, entre os movimentos sociais, é consenso de que a queda da violência é em parte consequência da soma de pequenas ações da sociedade civil organizada e de sua interação com os governos locais e estaduais, inclusive com pactuações com outros setores, como o Ministério Público e os Tribunais de Justiça.
Um dos desafios que estamos vivendo atualmente, diz respeito à grande contradição entre a ação do poder público e as organizações sociais, já que nos últimos anos o Estado não só terceirizou a maioria dos serviços socioassistenciais e de saúde, como também mantém mecanismos de precarização e uma política de baixíssimos recursos para os serviços conveniados com a Prefeitura de São Paulo.
Um exemplo gritante da economia feita pela Prefeitura de São Paulo quando terceiriza um serviço é o que acontece nos CEIs (Centros de Educação Infantil). Uma criança atendida por um CEI terceirizado custa para a prefeitura somente 50% do valor de outra que é atendida diretamente num Centro público. A própria Sociedade Santos Mártires hoje possui por volta de 30 serviços e aproximadamente 300 funcionários, quase 100% deles atendendo às áreas da assistência social, CEI, CCA, CJs, SPVV, Casa Sofia, NASF, SAICA e os núcleos socioeducativos, todos eles conveniados com a PMSP, e que na média dos últimos cinco anos repassou recursos que não chegaram a cobrir 80% dos gastos.
A contradição histórica vivida por instituições como a Sociedade Santos Mártires nos dias atuais é que elas poderão vir a sucumbir, sufocadas pela política dos gestores dos serviços públicos, que atendem a população carente, e são terceirizados para baratear custos. Fica difícil cumprir, ao mesmo tempo, as tarefas de mobilizar e de organizar a população para lutar pelos serviços essenciais a que ela tem direito e o papel de executor desses mesmos serviços, sem receber os recursos necessários para tanto.
Outros dois desafios apontados por pesquisadores do Centro de Estudos em Administração Pública e Governo da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo, que há uns 4 anos vem trabalhando conosco, diz respeito por um lado ao processo inconcluso de descentralização das ações do governo municipal (Lei das Subprefeituras); e por outro lado a falta de conectividade territorial entre os diferentes setores de políticas públicas e os órgãos e institucionalidades dos governos em suas distintas esferas (municipal, estadual e federal).
Seria injusto dizer que não há esforços e investimentos em prol das melhorias sociais e materiais, mas, por outro lado, é justo argumentar que os esforços institucionais básicos estão longe de serem adequados. Um exemplo simples: a legislação que estabeleceu as subprefeituras (Lei 13.399 de 1º de agosto de 2002) indica que a primeira entre as diversas atribuições das subprefeituras na cidade de São Paulo, é constituir-se em instância regional de administração direta com âmbito intersetorial e territorial. Fica óbvia a implicação disso: se não é de interesse dos órgãos do nível central, não haverá instância regional com âmbito intersetorial e territorial.
Em relação à falta de conectividade territorial, um membro do Fórum dos Pesquisadores aponta: “enfrentar a vulnerabilidade social e material é complicado, mesmo quando há esforços institucionais articulados e empenhados tanto para a garantia dos investimentos, quanto no apoio das pessoas que enfrentam essas condições. Torna-se desesperador quando tais esforços não se efetivam no cotidiano. Ainda mais quando se verifica a fragilidade e em certos casos uma ausência da institucionalidade pública necessária para sustentar os alicerces da dignidade e da segurança humana”.
Portanto, ao levarmos em consideração esses dois desafios, enumeramos três eixos que precisam ser aprofundados para avançarmos nesse debate: a) a falta de equidade na distribuição dos serviços existentes, b) a falta de conectividade entre os serviços da própria PMSP; e, c) a falta de efetiva relação federativa entre União, estado e município.
Padre Jaime Crowe, com a colaboração de Léa Maria Chaves educadora que foi coordenadora do CEDECA - Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Jardim Ângela (Sociedade Santos Mártires); Celina Simões educadora que foi coordenadora. da Casa Sofia - Núcleo de Defesa e Convivência da Mulher – e da Escola de Cidadania do Jardim Ângela (Sociedade Santos Mártires); Roberth Tavanti psicólogo social e pesquisador. Atualmente é membro da comissão executiva do Fórum em Defesa da Vida.
Para saber mais:
Crowe, J., & Ferreira, S. L. (2006). Jardim Ângela: em defesa da vida. Divulg. saúde debate, 85-91.
Crowe, J., Maria, L., Simões, C., & Tavanti, R. M. (2016). Fórum em Defesa da Vida: 20 anos de resistência pela vida dos/as jovens que vivem nas periferias da zona sul de São Paulo. Série documentos de trabalho; 09.
Peres, M. F. T., Almeida, J. F. D., Vicentin, D., Ruotti, C., Nery, M. B., Cerda, M., ... & Adorno, S. (2012). Evolução dos homicídios e indicadores de segurança pública no Município de São Paulo entre 1996 a 2008: um estudo ecológico de séries temporais. Ciência & Saúde Coletiva, 17, 3249-3257.
Spink, P., Tavanti, R. M., & Matheus, T. C. (2015). Vulnerabilidade institucional e a falta de conectividade em M'Boi Mirim. Série documentos de trabalho; 06.
Sociedade Santos Mártires https://santosmartires.org.br/