Em debate: Os diferentes contornos das microfinanças no M’boi
O Contexto
Desenvolvimento local tem a ver com a intensificação das relações econômicas de uma comunidade, que busca no próprio território oportunidades para expansão da liberdade (essa ideia é inspirada na obra do economista Amartya Sen, que via uma relação direta entre desenvolvimento e aumento da liberdade). Em termos práticos, o fortalecimento dos empreendimentos locais podem produzir aumento nos postos de trabalho disponíveis e, consequentemente, nos níveis de renda da população, engendrando maior acesso a serviços e bens de consumo, fortalecimento das redes e atores locais e qualidade de vida como um todo.
Quando examinamos a região do M’Boi, os dados do Censo (IBGE) são bastante explicativos. Em 2010 (data do último Censo) a região do M’Boi Mirim possuía 76% de domicílios com renda na faixa entre 1⁄2 e 5 salários mínimos. O mesmo número para o município de São Paulo como um todo é 57%, enquanto a proporção é de 17% no bairro de Pinheiros. Ou ainda, apenas 3% dos domicílios do M’Boi têm renda superior a 10 salários mínimos, comparado a 17% na região metropolitana de SP e 56% em Pinheiros.
A desigualdade de renda se insere em um círculo vicioso de manutenção da pobreza, uma vez que mecanismos potenciais de combate à vulnerabilidade social são retroalimentados pela própria desigualdade inicial de renda. Um exemplo é a falta de acesso da população ao sistema bancário formal, o que inviabiliza empréstimos e investimentos produtivos que dinamizam a economia local. A região do M’Boi apresenta um grande número de nanoempreendedores, microempreendedores e negócios familiares, algo bastante esperado diante do déficit de empregos formais: um índice de 0,2 empregos por morador (Dados de 2015 utilizando as bases da RAIS - Relação Anual de Informações Sociais).
Microfinanças na região do M’Boi Mirim
Diante do contexto acima, a região do M’Boi constitui um campo fértil de oportunidades para modelos e arranjos de microfinanças, aqui definidas como o acesso e uso de serviços financeiros por parte da população de baixa renda, geralmente excluída ou mal servida pelo sistema financeiro tradicional. Dentre os chamados serviços financeiros, o crédito tem sido o mais difundido, dando origem ao termo microcrédito, que é a concessão de pequenos empréstimos e financiamentos para geração de renda e aumento de bem-estar.
As relações comunitárias são a base da tecnologia social do microcrédito, na medida em que a falta de informações ou garantias é geralmente suprida pelo contato direto dos atores (ou seja, a proximidade entre quem concede crédito e quem o recebe), uma forma de conhecimento que pode ser atingida pelas ações em nível local.
Assim sendo, após a avaliação dos indicadores do M’Boi Mirim, nossa equipe de pesquisa desenvolveu no último ano um estudo sobre iniciativas de microcrédito produtivo na região, identificando as experiências dos Bancos Comunitários de Desenvolvimento (BCD) como referência. O distrito possui dois BCD: Banco Autogestão, sediado na Casa de Cultura São Luís; e o Banco União Sampaio, desenvolvido junto à União Popular de Mulheres. Os BCD atuam como agentes de desenvolvimento local ao disponibilizaram serviços financeiros à população. Funcionam ainda como correspondentes bancários, o que permite pagamento de contas e realização de empréstimos produtivos e para consumo. Ademais, os BCD implementaram o uso de moedas sociais, ou seja, moedas destinadas a circular somente na região, o que faz com que o dinheiro permaneça nos bairros que estão localizados. O foco de nossa pesquisa acabou recaindo sobre o Banco Autogestão, no bairro do Jardim São Luís, e os atores presentes na sua rede. Acreditamos que os “achados” principais são de grande valia para a região.
Principais achados da pesquisa
Um primeiro achado importante diz respeito ao papel do Estado como ator de fomento das iniciativas de desenvolvimento local. Como todo investimento produtivo, o tempo de maturação e retorno financeiro das iniciativas empreendedoras na região pode ser longo, implicando ser necessário uma fonte estável e suficiente de financiamento. O que podemos notar na dinâmica política do projeto de bancos comunitários, instaurada pela SENAES (Secretaria Nacional de Economia Solidária) e com duração de 2009 a 2016, foi uma constante instabilidade e fragilidade nesse suporte, que se dava por meio de editais públicos. Durante os anos de existência da política houveram vários períodos de interrupção do financiamento e fragilização dos bancos – com reflexos sobre a confiabilidade passada aos empreendedores locais.
Como relatado por uma de nossas entrevistadas, existe uma diferença muito grande na captação de recursos para quem está no centro e quem está na periferia. Para o segundo grupo, o financiamento é destinado muito mais às ações de assistência social do que para investimentos produtivos, adotando uma “retórica da caridade”. Políticas públicas consistentes podem ser um caminho para sanar essas assimetrias, garantindo estabilidade e segurança para as organizações.
Outro ponto que chamou nossa atenção é o dinamismo dos atores da comunidade na apropriação e transformação das novas estratégias e tecnologias do campo de microfinanças. É o caso da utilização de fintechs como o e-dinheiro, aplicativo destinado a transações monetárias - pagamento de contas ou compras no mercado - que possibilita a transferência de uma porcentagem desse valor aos Bancos Comunitários, aumentando também a segurança das operações. No caso estudado, novamente a implementação esbarrou na falta de financiamento, mesmo estando com o sistema operacional estabelecido.
Sendo a utilização dos Bancos Comunitários de Desenvolvimento apenas uma das estratégias possíveis para o fomento do desenvolvimento local, conseguimos observar a emergência de novas formas de negócios na região. Dada a transformação do contexto de políticas públicas e descontinuidade das ações da SENAES, os atores do M’Boi Mirim parecem adotar outras linguagens para atingir o financiamento privado, como o caso de linguagens corporativas e de negócios de impacto social. Essa transformação acompanha uma mudança geracional e tecnológica, sendo os atores mais jovens centrais para a apropriação dessas novas formas de se estabelecer agências de fomento ao desenvolvimento local. Está presente também nas trajetórias de formalização das organizações e na busca pelo avanço de conhecimento técnico.
Comparando os diferentes momentos das microfinanças no território, podemos perceber o que há de interação social no desenvolvimento econômico e de relações econômicas no desenvolvimento social. Um dos termos que nos apareceu diversas vezes durante a pesquisa foi confiança, elemento central no estabelecimento de laços que possibilitem a aceitação e adesão de novas tecnologias - sejam elas sociais ou digitais - pelos diferentes agentes econômicos do território. Um dos desafios na implementação de ações de microfinanças no território é a combinação dos instrumentos financeiros em diálogo com o setor real da economia, para que se traduzam nas melhorias que citamos acima. Trabalhar com inovação em nível local implica que sua utilização seja clara, prática e que traga vantagens aos negócios do bairro.
Algumas reflexões – como podemos melhorar as microfinanças no território?
Confiança é o ingrediente indispensável na construção de parcerias comerciais, na concessão de crédito ou no investimento produtivo. No entanto, deve vir acompanhada da possibilidade de acesso a recursos financeiros estáveis, ampliando o acesso às oportunidades para uma rede de atores que se mostra ativa na busca por soluções e estratégias que fomentem o desenvolvimento local da região do M’Boi Mirim.
Obviamente, espera-se uma postura ativa do Estado em fomentar políticas públicas inclusivas. Entretanto, diante do histórico de oscilações, alguns deles derivados dos ciclos político-eleitorais inerentes à democracia, as novas tecnologias podem ser utilizadas através de parcerias com o terceiro setor e com o setor privado, mitigando os efeitos adversos da oscilação dos recursos públicos disponíveis.