A segurança que queremos e o papel da conectividade: uma introdução
Segurança
Há, simplificando, duas noções muito diferentes em circulação sobre segurança. A primeira começa com a preocupação com a proteção do estado e a segunda começa com a proteção humana ou, se prefere, com a proteção cidadã. Se perguntamos em cada caso – por que e de quem proteger - veremos que as respostas são muito diferentes.
Discutir a segurança que queremos implica entrar nas tensões e conflitos entre estas duas noções distintas. São planos de fundo discursivos que levam, por exemplo, a certos grupos de querer mais polícia e outros menos, de ainda outros a se sentirem confortáveis com a ideia de policiamento comunitário e outros não. Para alguns o tema tende a levar em direção ao policiamento da comunidade, para outros – como na proposta do Fórum em Defesa da Vida – de policiamento a partir da comunidade.
A ideia da segurança do Estado é produto da gradativa construção do Estado moderno com uma autonomia territorial que precisa ser protegida. Tratados de paz e de convivência regional são parte desta proteção, como também é a noção de defesa. O Estado precisa ser defendido contra seus inimigos que de alguma maneira ameaçam a ordem, sejam estes externos ou internos.
De país para país, este processo de fortalecimento do Estado moderno aconteceu de maneiras distintas. Por isso, às vezes é difícil comparar ou levar uma experiência exitosa de um país para outro. Por exemplo, há países onde há uma distinção significativa entre um exército e serviços de inteligência que protegem o país “fronteira para fora” e uma única polícia interna (preventiva e investigativa) com também um serviço de inteligência doméstica. No caso do Brasil, a segurança do Estado “para fora” e “para dentro” se sobrepõem tanto histórica quanto atualmente. A polícia militar era a polícia dos militares e a força pública Paulista lutou na Segunda Guerra Mundial. Sua sede foi o prédio na Avenida Tiradentes onde hoje se encontra a ROTA. Constitucionalmente a polícia é subordinada ao exército em muitos aspectos e seu código de conduta interno é por todos os efeitos militar. Quer dizer, se reflete a necessidade de garantir que no calor da batalha, cada um segue as ordens do seu superior. Quando as pessoas discutem a desmilitarização da polícia, não está em discussão o uniforme ou o nome, mas esta coluna dorsal de pensamento e disciplina militar, reforçado nas práticas diárias e nas aulas de formação.
No caminho contrário, se situa a discussão de segurança humana. Como tornar e garantir que as nossas vidas diárias e coletivas sejam seguras. Esta ideia – porque estamos tratando de ideias e não verdades – foi defendida pela Organização das Nações Unidas (ONU) pela primeira vez em 1994 vinculado com a noção de “desenvolvimento humano sustentável”. Assim, segurança humana é a busca pela segurança fundada no fortalecimento das instituições democráticas e do Estado de Direito, proporcionando ao indivíduo condições adequadas para seu desenvolvimento pessoal, familiar e social. Citando o documento “Os Governos Locais e a Segurança Cidadão” publicado no Brasil com a chancela do PNUD e o Governo Federal, a segurança é vista como um assunto “relacionado diretamente com o respeito à vida e à dignidade, que inclui a segurança econômica, alimentar, sanitária, ambiental, pessoal, comunitária e política..”
Visto do lado da segurança humana, a segurança cidadã se refere a uma ordem democrática concreta, que elimina as ameaças de violência e de vulnerabilidade na população e permite a convivência segura e pacífica. É assim que chegamos à importância da conectividade. Se as diferentes atividades públicas que fazem parte do nosso cotidiano não conversam entre si, ou pior, nem estão presentes, a vulnerabilidade aumenta e, junto, a insegurança humana.
Conectividade
Conectividade não é “redes sociais” e muito menos “face book”. Estes e outros meios são apoios à conectividade mas a conectividade é mais substantiva e menos intangível. Se refere às relações duradouras que ampliam as possibilidades de ação. Ao conectar uma casa à rede de água e de esgoto, ou a rede de eletricidade, ao trazer alguém novo dentro de um círculo de amigos existentes, ao ajudar trabalhadores públicos de áreas diferentes a discutir problemas comuns, junta-se às partes e amplia-se horizontes e coletividades. Conectar – juntar A com B - não somente alonga as possibilidades de ação, esticando redes para lugares novos mas também adensa as possibilidades existentes. Neste sentido, conectividade é uma característica fundamental de qualquer comunidade é um aspecto importante da sua resiliência e resistência.
Na área pública, a preocupação com conectividade emerge ao olhar a maneira em que os diferentes serviços chegam no dia a dia do cotidiano de cada um. No olhar do gestor ou executivo (presidente, governador ou prefeito), os diferentes serviços são como as diferentes componentes de um leque, cada um indo em direção a sociedade em eixos e ângulos diferentes. Sua preocupação é com a intersecção destas atividades e sua coerência enquanto plataforma ou agenda de ação governamental; com as diferentes ações enquanto pacote de recursos, investimentos e orientações. No olhar do cidadão no dia a dia a situação é inversa. Sua realidade social e material é composta por questões, problemas, demandas e direitos diferentes que de uma pessoa para a outra são constituídas de forma distinta. Uma mãe solteira com criança pequena que precisa trabalhar, uma pessoa idosa com dificuldade de locomoção, um jovem buscando uma biblioteca para ler livros que sua escola não tem, alguém buscando emprego, outro buscando inserções culturais ou esportivas. Seu dia a dia em relação à ação estatal é feita de diferentes pedaços de diferentes assuntos que, por sua vez, são tratados por diferentes pedaços das diferentes organizações que sentam semanalmente na reunião geral do gestor ou executivo com quem iniciamos.
No primeiro olhar, do gestor, a preocupação é com a implementação de ações e serviços e, no segundo, do cidadão, seus familiares, amigos e vizinhos com as questões de localização e acesso; com a pergunta “onde tenho que ir e o que tenho de fazer para resolver XYZ”.
Se há um grau razoável de sintonia entre os dois olhares ao ponto que os formuladores de ações e implementadores de serviços levam em conta o dia a dia das pessoas para as quais as ações e serviços são orientadas, e os que buscam atendimento tem espaços de encontro para discutir a evolução de demandas e a qualidade dos serviços o resultado será um impacto positivo na segurança cidadã. Porque ao resolver questões e receber informações e orientações, pessoas não somente resolvem assuntos específicos mas, igualmente importante, são partícipes de uma relação que sustenta uma noção mais horizontal da relação entre estado e cidadão. De ser parte de um universo cívico coerente e democrática.
No caso contrário, quando há falta de sintonia entre os dois olhares e onde a organização do primeiro e suas orientações operacionais não levam em consideração o olhar do dia a dia, a partir do cotidiano das pessoas, a consequência será o aumento e não a diminuição das vulnerabilidades presentes, não somente sociais e materiais mas agora – pior ainda – institucionais.
As não-cidades e as cidades invisíveis
Vulnerabilidade como noção é bastante antiga, vem da ideia de ferir (vulnerare). Alguém é vulnerável porque pode ser ferido e para ser ferido é necessário (a) algo que poderia ferir e (b) uma ausência de proteção. Os dois se inter-relacionam: quanto menos protegido, mais vulnerável, e quanto maior as ameaças, mais a vulnerabilidade. Um momento de reflexão no dia a dia de cada um vai trazer imagens, sentidos e memórias de vulnerabilidade: de um senso de fragilidade diante os eventos, da falta de proteção, de um momento quando por razões pessoais somos menos resistentes. Ao se tratar de vulnerabilidade em relação à segurança humana, é útil pensar em três eixos: a vulnerabilidade institucional, material e social. Muitas vezes os três são tratadas pela ordem inversa, iniciando pela social; isso porque temos uma tendência de localizar os problemas nas pessoas, de individualizar a situação de cada um e, mesmo não querendo, responsabilizá-las também.
No caso da zona sul estendida de São Paulo é importante não cair na armadilha de individualização. Sim, sabemos pelos relatos, dos indicadores e da vida diária que o grau de vulnerabilidade social é grande e há muita a ser feita. Sabemos da vida diária – porque as informações disponíveis são menos veiculadas e raramente dada o devido destaque – das vulnerabilidades materiais: habitações precárias e muitas áreas de risco de escorregamento e inundação. Enfrentar a vulnerabilidade social e material é uma coisa quando há esforços institucionais para apoiar as pessoas que enfrentam estas condições e investir nas melhorias necessárias, mas é algo inverso quando esses esforços não estão presentes. A ausência de uma institucionalidade que fortaleça os alicerces da dignidade é, nos nossos estados democráticos e de direitos a negação dos princípios mínimos da segurança humana e da segurança cidadã. Quando esta situação é produto de uma fragilidade, frutos das dificuldades de desenvolvimento a situação é uma, quando é produto de decisões conscientes de alocação de pessoas e de estratégias de gestão, a situação é outra.
Seria injusta argumentar que no caso da zona sul estendida não há esforços para investir nas melhorias necessárias mas, por outro lado, é justo argumentar que os esforços institucionais básicos estão ainda longe de serem adequados. Um exemplo simples: a legislação que estabeleceu as subprefeituras (Lei 13.399 de ! de agosto de 2002) indica que a primeira entre diversas atribuições das subprefeituras, respeitados os limites de seu território administrativo e as atribuições dos órgãos do nível central, é constituir se em instância regional de administração direta com âmbito intersetorial e territorial. Para o leitor fica óbvio a implicação: se não é de interesse dos órgãos do nível central, não haverá instância regional com âmbito inter-setorial e territorial. Esta é a situação atual.
Quando o Centro de Estudos de Administração Pública e Governo da Fundação Getúlio Vargas retornou à região em 2013, uma das primeiras atividades era de buscar aprofundar as informações coletadas anteriormente para um trabalho sobre o impacto dos recursos Federais para os mananciais. Naquele momento, não havia nenhuma agregação de informação de base territorial e era necessário buscar em cada secretaria municipal a distribuição de serviços – quando disponibilizada – e um por um localizar num mapa confeccionado manualmente a partir de guias distribuídas comercialmente.
Na parte do portal da Prefeitura de São Paulo dedicada aos subprefeituras constava e continua constando (05/10/2014) a seguinte descrição:
“Poucas pessoas sabem, mas São Paulo possui 32 pequenos ‘municípios’ distribuídos pela cidade. Desde 2002, com a aprovação da lei 13.399, a maioria dos equipamentos públicos, como clubes da comunidade (antigos CDMs) e clubes da cidade foram transferidos para as subprefeituras.
Essas subprefeituras têm o papel de receber pedidos e reclamações da população, solucionar os problemas apontados; preocupam-se com a educação, saúde e cultura de cada região, tentando sempre promover atividades para a população.
Além disso, elas cuidam da manutenção do sistema viário, da rede de drenagem, limpeza urbana, vigilância sanitária e epidemiológica, entre outros papéis que transformam, a cada dia, essas regiões da cidade em locais mais humanizados e cheios de vida.
Além dos problemas cotidianos, esses pequenos ‘municípios’ guardam segredos e curiosidades pouco conhecidas pela população.”
O pequeno “município” que representa M’Boi Mirim, se fosse de fato um “pequeno” município, seria entre os mais importantes municípios do Estado de São Paulo (similar a Sorocaba com 580.000 habitantes) e a região da Guarapiranga – de Santo Amaro para Parelheiros pelos dois lados, seria um dos principais regiões metropolitanas do País. A população de Jardim São Luís é 267. 871 e a de Jardim Ângela 295.434, totalizando 564.305 pessoas. A população do município – sim município – de Itapecerica da Serra é 152.614, de Embu das Artes é 240.230 e Taboão da Serra 244.528. Por serem municípios, contam com o pacote de infraestrutura mínima prevista na constituição de 1988 e os diversos mecanismos de governança democrática e inter-setorial também previstos na legislação subsequente. Somados, as subprefeituras das bordas da represa de Guarapiranga têm uma população maior do que a Região Metropolitana da Baixada Santista.
Conforme se pode atestar no dia a dia, a situação destes pequenos “municípios” é longe de ser aquela descrita, e – importante frisar – não por causa de uma falta de dedicação dos servidores de base territorial. Felizmente, o próprio município começa a se dar conta da importância de informações territoriais (pelo menos para o cidadão) e recentemente introduziu na primeira página de seu portal um “Mapa de Serviços”. O mapa – com as informações do próprio município – confirma as conclusões retiradas das informações anteriores. Ao mostrar o que se tem e não, onde se encontra e não encontra, deixa claro as fragilidades da cobertura institucional de um lado e, de outro, deixa claras as implicações de ausência de conectividade territorial daquilo que está presente.
Convidamos cada um a entrar no Mapa de Serviços e fazer a sua leitura. Onde estão, por exemplo, as bibliotecas e quais as horas de abertura; há equipamentos esportivos; onde são as feiras livres e como acessar os serviços de assistência social? Onde estão os serviços de saúde e de educação – será que conversam entre si e onde são as coordenadorias? O Mapa de Serviços é somente para as unidades municipais, mas é um bom ponto de partida para outras perguntas. Onde estão as universidades, as escolas técnicas e os cursos profissionalizantes? Onde estão os cartórios de registro de imóveis, de registro de pessoas civis? Onde estão os lugares para pagar contas; os parques; as linhas de ônibus e retornando à questão de vulnerabilidade material: os bombeiros?
Peter Spink
Centro de Estudos de Administração Pública e Governo FGV/EAESP
Roberth M. Tavanti
Programa de Estudos Pós-graduados em Psicologia Social PUC-SP