A mobilidade das mulheres na cidade de São Paulo – padrões diferentes e políticas
homogêneas
As políticas públicas de mobilidade vem desenvolvendo estudos sobre problemas urbanos de trânsito, a saturação das vias públicas, uso e ocupação do solo, alongamento das cidades com o crescimento das regiões periféricas (onde as trabalhadoras encontram espaços possíveis de moradia) e, mais recentemente, vem entrando em pauta a discussão sobre sustentabilidade (exemplo são as propostas de implementação de políticas de incentivo à outras formas de mobilidade, como bicicletas e a mobilidade a pé (MALATESTA, 2007) – porém, para isso ser possível, a estrutura das cidades precisa enxergar mais as pessoas e menos os automóveis).
Esta pesquisa discute os problemas de mobilidade enfrentados pelas mulheres no espaço público a partir da experiência das mulheres da zona sul da cidade de São Paulo em seus deslocamentos cotidianos. Falaremos das mulheres que se movem pela cidade e sobre a necessidade de se incorporar a perspectiva de gênero (GRAU, 2014) nas políticas de planejamento urbano em todos os níveis de governo. O recorte de gênero vem sendo cada vez mais estudado, considerando que há acesso desigual aos meios de transporte público (SVAB, 2016), às oportunidades e às múltiplas formas de se mover pela cidade.
O que se sabe em relação ao mover-se das mulheres na cidade? Do direito de ir e vir cerceado pela violência das ruas e transportes públicos? Da falta de calçadas e lugares para caminhar, da falta de parques e praças para o lazer e o encontro, do tempo para o cuidado, da relação do tempo com a pobreza, das distâncias territoriais e da falta de permeabilidade nas grandes avenidas? São questões que envolvem o universo das mulheres mais que o dos homens.
Padrões diferentes e políticas homogêneas
A Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano (SMDU) lançou um informe urbano sobre a mobilidade das mulheres em São Paulo (PMSP, 2016). O estudo destaca a falta de investimento nos transportes coletivos e a contínua concentração da riqueza com seus processos históricos de ocupação do solo, gerando deslocamentos ineficientes do ponto de vista econômico e socialmente excludentes. Destaca ainda os longos trajetos que as moradoras pobres da cidade de São Paulo perfazem diariamente para trabalhar, já que as ofertas de emprego estão concentradas nas regiões centrais. O informe pretende contribuir para o debate sobre políticas urbanas inclusivas e políticas públicas setoriais relacionadas ao tema. Dados da pesquisa sobre Origem e Destino (OD), realizada pela Companhia do Metropolitano de São Paulo de 2012, foram usados neste estudo. Os dados apontam que as mulheres utilizam o transporte coletivo para diversos fins e com mais intensidade que os homens. Elas também se movem mais a pé do que eles, utilizando menos o transporte individual. Enquanto os homens fazem uso de seus carros, ocupando mais espaço na cidade e poluindo o meio ambiente, as mulheres fazem uso de outros meios de locomoção mais conscientes e sustentáveis. Além disso, podemos afirmar que as mulheres conhecem o espaço público de forma mais orgânica, pelo modo heterogêneo como elas se deslocam pela cidade.
Segundo a Pesquisa de Mobilidade da Região Metropolitana de São Paulo (Companhia do Metropolitano de São Paulo 2012), existe um padrão distinto entre homens e mulheres no deslocamento urbano na região metropolitana de São Paulo. Salientamos, porém, que não há uma política específica para elas e que dentro do grupo mulheres há muitas vivências diferentes da mobilidade: por exemplo, as mulheres mais jovens utilizam o transporte público ou andam a pé para estudos e lazer; as que possuem de 18 a 60 anos possuem trajeto mais diversificado, compostos por atividades de trabalho, lazer, estudos e o cuidado (O cuidado é uma das atividades que toma boa parte do tempo das mulheres, mas é pouco estudado nas pesquisas sobre mobilidade); já o grupo das mulheres acima dos 60 anos anda mais a pé no bairro ou utiliza o transporte público para o cuidado com a saúde. Em suma, com finalidades de viagens mais diversificadas e deslocamentos realizados em sua maioria a pé ou em transporte coletivo, mulheres perfazem um padrão de mobilidade que vai além do eixo “moradia-trabalho”.
Vasconcelos (2012), aponta que os principais problemas vividos pelas mulheres estão relacionados com as duas principais formas de se locomoverem no cotidiano: a caminhada e o transporte público. Foram identificados os seguintes problemas: a falta de calçadas e pontos de travessias de ruas inadequadas (o que se torna mais grave quando a mulher está levando alguma criança); a falta de oferta de transportes fora do horário de pico; a falta de oferta de transporte que circule no interior do bairro e a dificuldade para entrar no transporte público superlotado (com aumento maior de dificuldade quando ela está com crianças, acompanhando idosos ou levando pacotes de compras).
Para Liliane Raniero (2005), a cidade é o âmbito onde a vida social e seus conflitos se expressam. Porém, esse ambiente é hostil para as mulheres que são objeto de diferentes tipos de violência, tanto em seu transitar cotidiano, como nos espaços públicos, em suas vivências, em seus trabalhos e nas instituições. As políticas públicas subestimam a violência sofrida por elas, uma vez que as leis são geralmente pensadas de forma transversal e nos gabinetes. Além disso, as políticas são formuladas principalmente por homens, o que faz com que a violência percebida e contada pelas mulheres não seja a mesma combatida por eles. As tentativas de respostas à superação da violência seguem indicadores generalizados, o que diminui ou invisibiliza a violência sofrida pelas mulheres.
As feministas reconhecem há muito tempo que o gênero e a mobilidade são inseparáveis: um influencia o outro de maneira profunda e muitas vezes sutil (HANSON 2010). Em geral os principais temas de investigação a respeito de gênero e mobilidade urbana estão relacionados com violência de gênero, abuso sexual no transporte público, uso diferenciado do espaço público (em particular o uso do transporte público), o caminhar e o uso do automóvel, o uso do tempo e a interdependência. Nos países desenvolvidos houve, nas três últimas décadas, um crescente reconhecimento da importância de integrar as questões de gênero em pesquisa que orientam as estratégias e o planejamento das políticas de mobilidade (BUITEN, 2007). Com a aplicação da lente de gênero, as abordagens androcêntricas são questionadas no planejamento tradicional. Porém, essa perspectiva precisa ser levada aos países em desenvolvimento, onde esse planejamento se torna mais urgente como forma de combater a pobreza e a opressão.
A mobilidade urbana é uma das experiências que mais incidem na qualidade de vida das pessoas na cidade, em especial quando o acesso a espaços públicos de cuidados, lazer e tantos outros são dificultados. A política pública é responsável por essa iniquidade quando o planejamento urbano é organizado de forma homogênea, como é na maioria das grandes cidades, pensando em um usuário padrão, nesse caso sempre os homens. Os problemas aumentam, já que a mobilidade restringida produz desigualdades. As vivências urbanas e suas rotinas cotidianas são diferentes entre homens e mulheres (JIRÓN 2012, Martinez, 2015) e a experiência da mobilidade não é igual para todas as pessoas.
A mobilidade das mulheres se caracteriza por uma grande complexidade, já que à elas foram reservadas múltiplas responsabilidades. Um exemplo são as atividades de cuidado, que abrange uma infinidade de tarefas e as torna responsáveis por tudo em seu núcleo familiar, consumindo todo seu tempo e as impedindo de se locomoverem. Esse problema aumenta nas cidades desiguais (MARTINEZ 2015), por exemplo quando lhes falta uma rede de apoio e uma rede de transporte público de qualidade que lhes atenda em horários específicos. Em suma, as oportunidades que as cidades oferecem às mulheres pobres e periféricas são restritas e essa disparidade no acesso às oportunidades tem relação direta com a pobreza.
Na periferia sul da cidade de São Paulo a experiência de andar a pé não é das mais agradáveis e esse modal é obrigatório do ponto de vista da necessidade de acessar os espaços, já que o transporte público não circula no interior dos bairros. As mulheres andam a pé de casa ao ponto de ônibus, aos locais de compra, aos postos de saúde, às escolas, casas lotéricas e bancos, farmácias, igrejas e tantos outros locais. Ao caminhar, experimentam problemas no itinerário, como a falta de segurança, ruas esburacadas e sem iluminação adequada, falta de calçadas e a disputa do espaço com automóveis. São áreas segregadas e com severos problemas de acessibilidade (MARTINEZ, 2015), que exige delas um esforço para deslocamentos a pé. As mulheres com menos recursos econômicos são as mais afetadas pela falta de transporte público eficiente e confiável e pela distância geográfica entre a casa e o trabalho (MARTINEZ, 2015 p. 51).
Na prática, a experiência de habitar a cidade é diversa e traz várias
implicações de gênero, isso pede planejamento urbano e políticas públicas para superar essa desigualdade. Para que isso ocorra se faz necessário compreender as atividades diárias das pessoas no tempo e no espaço. Sobre a importância de olhar o cotidiano, Paola Jirón (2012) argumenta:
O cotidiano se refere ao que as pessoas vivem de maneira diária: está
conectado a lugares onde mulheres e homens vivem, trabalham, consomem,
descansam, se relacionam com os outros, constroem identidades, enfrentam
os desafios e a rotina, os hábitos e as normas estabelecidas de conduta. Essas
experiências acontecem de forma mais acentuada, no ônibus, na caminhada,
movendo-se, ficando parados, conhecendo gente, compartilhando momentos,
que se constituem a essência do urbano (p.176, tradução nossa)
Para Jirón (2007), as intervenções urbanas não levam em consideração a forma como as pessoas experimentam a cidade e o planejamento urbano usa dados abstratos que pouco revelam as realidades, além de instrumentalizar o cotidiano com uma catalogação e mecanização da vida cotidiana.
As mulheres também possuem padrões de viagem diferenciados segundo características demográficas. A mobilidade feminina depende de diversos fatores, tais como idade, responsabilidade no cuidado com crianças e idosos, renda, nível de emprego, classe social e educação. Forneck e Zuccolotto (1996) observam ainda que, devido ao fato de estarem mais sujeitas ao regime de trabalho diferenciado e por realizarem mais visitas sociais entre suas famílias e amigos, as mulheres viajam com maior frequência em períodos fora do horário de pico, quando comparadas aos homens. O sistema de transporte público não considera essas especificidades, já que diminuem a oferta de serviços nesses horários e os ônibus não circulam internamente nos locais onde as mulheres precisam ir. O sistema de transporte público foi dimensionado, há muito tempo, para os trabalhadores homens se deslocarem entre sua casa e a indústria e não atendem adequadamente às mulheres (NAKANO, 2015).
Maria Ángela Díaz Muñoz (2017) argumenta que as pesquisas ainda estão preocupadas com as distâncias que as pessoas percorrem, de suas casas ao trabalho e nos horários de maior demanda. Há necessidade de estudos de mobilidade dirigidos para os deslocamentos cotidianos integrados durante as 24 horas do dia. Para essa pesquisadora, as mulheres apontam uma maior sensibilidade aos fatores espaço e tempo por suas múltiplas funções. A mobilidade urbana precisa pensar nessas mulheres que compatibilizam seu tempo com trabalho e outros cuidados.
Uma primeira aproximação nos estudos de mobilidade segundo gênero foi a análise das diferenças entre mulheres e homens. As novas tendências no feminismo pensam essa tendência e alargam o entendimento para outras linhas de investigação e pretendem reconhecer a diversidade segundo a idade, atividades, nível sócio econômico e situação familiar dentro do grupo mulheres (Muñoz 2017, p. 93- tradução nossa).
Apontamos a necessidade de uma agenda política para a mudança na mobilidade e no uso do espaço público, tendo as mulheres como participantes ativas do processo. O gênero e o transporte não podem ser desvinculados e, para surtir efeitos, a agenda política também tem que ser feminista.
Para saber mais:
BUITEN, Denise. Gender, transport and feminist agenda: feminist insights towards engendering transport research. Transport and communications bulletin for Asia and the Pacific, no 76. 2007.
COMPANHIA DO METROPOLITANO DE SÃO PAULO. Secretaria dos Transportes Metropolitanos. Pesquisa de Mobilidade 2012. Base de dados. Disponível em: <http://www.metro.sp.gov.br/metro/numeros-pesquisa/pesquisa-mobilidade-
urbana- 2012.aspx>. Acesso em 28/06/2018
FORNECK, Maria Luiza.; ZUCCOLOTTO, Silvana. Mobilidade das mulheres na Região Metropolitana de São Paulo. Revista dos Transportes Públicos, Brasília, n. 73, p. 95-103, 1996.
GRAU, Carmem Innerarity. MARTINEZ, Ana Sancho. Ciudad y Ciudadanía. Un análisis de los planes estratégicos de desarrollo urbano desde la perspectiva de género. Investigações feministas, Vol 5, p. 342-370, 2014.
JIRÓN M, P. (2012). Implicancias de género en las experiencias de movilidad cotidiana urbana en Santiago de Chile. Revista Venezolana De Estudios De La Mujer, 12(29). Consultado de http://saber.ucv.ve/ojs/index.php/rev_vem/article/view/2166
MALATESTA, Maria Ermelina Brosch. Andar a pé: uma forma de transporte para São Paulo. Dissertação de mestrado. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, 254p., 2007.
MARTINEZ, Cristhian Figueroa and SANTIBANEZ, Natan Waintrub. Movilidad femenina en Santiago de Chile: reproducción de inequidades en la metrópolis, el barrio y el espacio público. urbe, Rev. Bras. Gest. Urbana [online]. 2015, vol.7, n.1, pp.48-61. ISSN 2175-3369. http://dx.doi.org/10.1590/2175-3369.007.001.AO03.
MUÑOZ, Maria Angeles. GIGANTE, Francisco José Giménez. Transportes y movilidad: necesidades diferenciales según género? Ponta Grossa, Terr@ Plural, 1(1): 91-101. 2017.
NAKANO, Kazuo, A crise da mobilidade urbana na região metropolitana de São Paulo. In. BÓGUS, Lucia Maria Machado e PASTERNARK, Suzana. São Paulo, Transformações na ordem urbana. Rio de Janeiro: Letra Capital, pp. 263-295. 2015.
PREFEITURA DE SÃO PAULO, A mobilidade das mulheres na cidade de São Paulo. Informes Urbanos. Elaboração: Priscila Specie, Vitor César Vaneti, Pedro Salomon Bezerra Mouallem. smul.prefeitura.sp.gov.br/informes_urbanos/pdf/39.pdf. 2016 Acessado em 28/06/2018.
RANIERO, Liliane. Herramientas para la promoción ciudades seguras desde la perspectiva del género (86 p.). Córdoba: CISCSA, 2006.
SVAB, Haydée. Evolução dos padrões de deslocamento na Região Metropolitana de São Paulo: a necessidade de uma análise de gênero. Dissertação de mestrado. Escola Politécnica. Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, 47 p., 2016.
VASCONCELLOS, Eduardo Alcântara. Mobilidade Urbana e Cidadania. Rio de Janeiro: Senac Nacional, 2012.